quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Esperança

Por toda a falta de agitação e clima de festividades Pedro sabia que era dia 31 de dezembro. Há muito tempo ele parara de contar os dias, pois para quem vivia na rua não havia essa necessidade, um dia era igual o outro. Mas especialmente nesse dia 31 as coisas pareciam diferentes. Ele acordara cedo, como sempre, se espreguiçou e percebeu que chovera um pouco a noite, pois seu farrapo que chamava de cobertor estava um pouco encharcado. Mas ele não ligara. Ao juntar suas coisas ele observou que alguém deixara uma nota de dez reais entre seus papelões. Não pensou duas vezes. Foi procurar um lugar para tomar, depois de muito tempo, um café da manhã decente. Havia uma padaria perto da igreja e ele rumou para lá. Sabia que não seria bem vindo e tentou se arrumar do melhor jeito possível. Chegando lá, para sua surpresa, foi recebido com um belo sorriso da atendente. Sentou perto do balcão e fez seu pedido. Pediu coisas simples, pois queria que sobrasse dinheiro para comprar comida para o almoço. Seria um dia especial, não fazia idéia de quanto tempo não tomara café da manhã e comia no almoço no mesmo dia, ou era um ou outro. Começou a comer, estava faminto. Devorou um pão e meio e depois percebeu que ao seu lado havia uma garota com o cabelo todo desengrelhado e com muita cara de fome. Sem dúvida suas vidas eram parecidas. Sem muito o que pensar deu o resto do seu pão para ela e pagou-lhe um copo de leite. A pequena garota comeu e bebeu tudo e foi embora.
Pedro voltou para a rua e sem muito o que fazer procurou uma sombra para sentar. Estranhamente as pessoas passavam por ele e sorriam, e algumas até desejavam bom dia. Algum tempo depois sentou-se ao seu lado outra pessoa, também com roupas puídas e cabelo e barba a fazer. Não disseram nada todo o tempo que permaneceram sentados. Chegando próximo ao horário de almoço, Pedro foi comprar sua marmita. Voltou ao local onde estivera sentado e dividiu-a com o outro, seu dinheiro não dava para comprar duas. Os dois acabaram com tudo rapidamente, e mesmo não estando saciados estavam contentes por terem algo na barriga. Se separaram e cada um tomou um rumo diferente. Pedro passou o resto da tarde caminhando por um bosque sozinho. Pouco antes do anoitecer ele passava pelo centro da cidade e presenciou um acidente de transito horrível. Dois carros bateram de frente. Ninguém na rua se mexeu de pavor, mas Pedro rapidamente foi ao socorro das vítimas, prestando serviços até que as ambulâncias chegaram e partiram com as vítimas para o hospital. Uma dos para-médicos disse a ele que se não fosse sua ajuda imediata a criança que estava em um dos carros teria morrido. Pedro ganhou um aperto de mão e agradecimentos.
Já era noite agora e Pedro procurava um lugar para dormir. Mesmo sabendo que haveria uma queima de fogos mais tarde ele não e importava muito em assistir. Estava cruzando um viaduto quando uma leve brisa começou a soprar, o tempo pareceu estranho a ele, como se estivesse parado. As poucas estrelas do céu não brilhavam mais e nenhum carro passava pela rua. Ele também parou. Um homem se aproximava. Esse homem estava impecavelmente vestido e ainda usava luva e chapéu. Estava todo de branco e emanava um luz que trazia paz. Parou em frente a Pedro e falou:
- Ainda há esperança em meu povo. Estive observando você pelo dia de hoje, Pedro. Você não leva uma vida de conforto e ainda assim consegue ser digno em seus atos e com você mesmo. Você me alimentou de manhã e dividiu seu almoço comigo de tarde. Esteve atendo as pessoas e socorreu os necessitados quando ninguém mais quis. Escolhi você Pedro pois infelizmente hoje é seu ultimo dia entre as pessoas. Queria ver suas atitudes. Você ganhou meu respeito e admiração. E como eu disse, ainda há esperança em meu povo. Agora descanse Pedro.
Pedro sentiu uma pontada no peito e a escuridão estava tomando conta de seus olhos.
- Obrigado, Senhor.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Nargolith

Na mais profunda das tumbas, bem abaixo do coração de Nargolith, a maior montanha do norte, em um lugar onde até mesmo as rochas são negras e nenhum ser da superfície seria capaz de sobreviver por um mero segundo, havia uma prisão. Não uma prisão qualquer com grades e portas, mas uma prisão criada por magia, supostamente a mais poderosa da época em que os dragões ainda voavam pelos vales.
A tal prisão era de um formato ovalado com uma junção feita com um material que já não existia mais e até onde os homens julgavam inquebrável. Estava incrustada abaixo de milhões de toneladas de rocha e que nem mesmo os mais hábeis anões existentes seriam capazes de alcançar.
Hoje há poucos no mundo que conhecem sua existência, que virou praticamente uma lenda, um fantasma de um passado remoto atormentado pelas sombras. Mas uma coisa que nem mesmo as mais antigas árvores se lembram é o ser, criatura ou demônio que foi aprisionado abaixo da montanha. Um ser tão terrível e pavoroso que mereceu ser esquecido e extinto da face do mundo, até ser banido dos pensamentos dos homens e elfos.
Mas ele não esqueceu.
Do tormento, da dor, rancor e ódio, corroendo seu já desestruturado corpo por centenas, ou até milhares de anos. Totalmente sozinho, sem luz, sem ruídos, sem água e sem comida, obrigando-o a devorar seu próprio corpo, começando pelos dedos das mãos. Que já não existiam a muito tempo.
Seus olhos, hoje já secos não tinham mais brilho, na verdade não tinham mais nada. Eram apenas dois poços sem fundo onde a vida se acabava.
Mais em meio a tantos horrores que passou por todos esses anos, ele aproveitou cada instante se sua prisão para aumentar seus poderes mágicos, pois ele era um mago negro, que em sua época fora o mais poderoso.
Seu poder atual era impossível de se calcular, nem mesmo ele sabia sua amplitude. Estava apenas aguardando o momento de emergir novamente e ter outra vez a Terra a seus pés. Ele crescia, sentia que crescia. Se já era poderoso antes, imagine agora.
Então chegou o dia.
Ele achara que chegara.
Uma chama brilhou em seus olhos, mesmo que por um segundo, e a montanha tremeu. Pedras rolaram em avalanches levando pedaços da montanha abaixo. As águias que faziam seus ninhos por alí sentiram o poder abaixo delas e voaram para longe, para nunca mais voltar. O gelo acumulado no topo começou a derreter, criando novos rios que logo eram eram evaporados.
Mas o pior de tudo estava por vir. Um feixe de luz atravessou o espaço, clareando o cêu naquela parte do mundo. Então a montanha explodiu em milhões de pedaços, como se uma pedra vindo do espaço a tivesse atingido. Depois que a poeira abaixou o que restou apenas foi uma gargalhada hedionda que fez com que a vida nos vales ao redor se extinguisse, secando rios e matando animais e plantas.
Nesse exato momento, Nelfil acordou suando frio em sua cama, a dois mil e trezentos quilômetros dalí. Levantou, vestiu sua capa e chapéu, pegou seu cajado em um canto e saiu pela porta.


Aquela era uma estranha noite. O vento soprava quente, como se um dragão gigantesco estivesse baforando por alí. As estrelas estavam com um brilho tênue e parecia que iam se apagar a qualquer instante, assim como a lua já fizera, no momento que uma nuvem negra vindo do norte a apagara do céu.
Nelfil andava em meio as casas em um passo apressado, apoiando-se em seu cajado e usando uma grossa capa, que de tão surrada pelo tempo já não se sabia a cor, envolvendo seus mirrados ombros. Uma barba cinzenta e emaranhada descia de seu pontudo queixo até a altura do umbigo. Bem como seus cabelos, que precisavam de uma boa esfregada. Quem olhasse Nelfil naquela noite imaginaria que fosse um mendigo, louco para encontrar um canto para repousar ou uma garrafa com algum líquido alcoólico.
Mas ele não era um mendigo. Por baixo de toda poeira de sua capa havia um mago, que sustentava anos de existência e sabedoria; que era sua especialidade.
Ele não tinha o poder de manifestar grandes mágicas, mas seu conhecimento era muito vasto. Aprendera diversas línguas, antigas e atuais, até mesmo a língua grutual dos trolls e a estranha fala das árvores, que poucos sabiam ouvir. Se ele era sábio certamente isso se deve de suas longas andanças pela vastidão do mundo. Desde os mais remotos campos do leste, até o extremo norte, onde poucos se aventuram. E é claro que conhecia a parte sul do mundo, onde vive o Rei em seu castelo flutuante.
Cruzando por uma esquina onde havia uma taberna, Nélfil parou. A sua frente já se via o campo aberto, onde uma estrada seguia em linha aberta rumo ao norte, ladeada por algumas casas no começo. Apertando seus olhos o mago tentou enxergar longe, mais além da cadeia de montanhas de Sítion, e por um breve instante ele pensou ver uma faixa vermelha de luz bem na linha do horizonte, como se houvesse alguma coisa em chamas. Mas sua visão não era das melhores e logo não enxergou mais nada.
Depois de um tempo parado com o vento morno batendo em seu rosto, ele caiu em sí. Por que havia acordado suando e assustado? E por que a vontade de sair no meio da madrugada e olhar para o norte? E pior, por que seu pensamento voltou para o passado, para as eras antigas que eram tumultuadas pelas guerras?
Ficou um tempo ali pensando até que uma mudança repentina no vento fez seu chapéu voar. O vento agora estava frio e vinha do leste. A lua aparecera novamente e as estrelas pareciam que se incendiaram de novo. Só restou a Nélfil voltar para sua pousada.
O sol já ia alto quando o mago acordou de sua tumultuada noite. Levantou-se e foi lavar o rosto em uma bacia de água, que a bem dizer não era uma água muito louvável, mas Nélfil já nem ligava.
Tivera um sonho estranho depois que voltou para cama de madrugada. Sonhou que criaturas aladas rodeavam seu corpo, que estava estendido em cima de uma altíssima torre e ao seu lado havia um guerreiro que bravamente tentava afugentar as criaturas. E o que mais chamou a atenção de Nélfil nesse guerreiro é que ele usava duas espadas e as manejava com uma habilidade incrível. Logo depois que uma dessas criaturas conseguira cravar suas presas no espadachim o mago acordou.
Após um rápido e miserável café da manhã, vestiu sua capa e seu chapéu e saiu pela porta, não antes de dar uma última olhada para dentro, para ver se não havia esquecido de nada. Andou dois quarteirões descendo a ladeira e parou em frente a uma outra porta, que pertencia a uma casa grande e elegante. Com seu cajado, Nélfil deu três batidas fortes.
Quem abriu a porta foi um sujeito gordo, careca e com um bigode espesso cortando seu rosto arredondado.
- Há! É você. – disse o gorducho.
- Vou-me embora desta cidade. – apressou-se em dizer Nélfil. - Vim acertar minhas contas. Vejamos, foram dois meses e dezessete dias. Quanto te devo?
O careca que era o dono da casa calculou alguns números para sí mesmo e olhou para o mago, que mais parecia um mendigo errante, de baixo para cima e imaginou se ele teria dinheiro para pagar a pensão. Depois disse por fim:
- Tudo bem, uma moeda pequena de bronze pode pagar por sua estadia.
- Certo. – Respondeu o mago, que vasculhava por todos os bolsos a procura de uma moeda, até que olhou debaixo do chapéu e encontrou o pagamento.
- Aqui está! Muito obrigado e adeus.
Nélfil se virou e já ia indo embora quando o dono o chamou novamente.
- Me desculpe pela intromissão, mas caso alguém pergunte, para onde está se dirigindo?
- Não se preocupe, ninguém irá perguntar. Adeus.
O mago então em passos lentos continuou descendo a ladeira que ia dar na estrada que rumava para o norte.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Dois copos em um bar

– Mataremos então a velha! – Disse o jovem inclinando-se um pouco para frente.
O outro ainda permanecia em silêncio e de cabeça baixa. Segurava o copo com as duas mãos e de vez em quando bebericava seu uísque. Estavam sentados juntos a apenas algumas horas, quando se encontraram sem querer no imundo e obscuro bar que ficava bem em frente ao antigo teatro. Já passava das dez da noite e o ambiente estava quase vazio, havia apenas dois velhos alcoólatras dependurados no balcão bebendo conhaque e uma mulher de aparência sedutora a poucos metros dos senhores, sua vestimenta denunciava sua profissão um tanto quanto duvidosa; esta bebia vinho. E ao fundo se encontravam os dois homens que bebiam uísque e vodka.
– Terás coragem de acabar com uma vida humana? – Retrucou o mais velho com um tom amargo.
Os dois se conheciam de outro bar, o que ficava a poucos metros do cemitério. Nunca haviam se falado antes, mas agora já trocavam algumas palavras. O mais jovem, que girava o gelo de sua vodka com o dedo, era de aparência estranha. Hora parecia bonito, hora parecia horrível, dependia de como se olhasse para ele. Tinha os cabelos louros e muito curtos e uma barba sem muito significado no queixo, usava ainda um tremendo óculos com aros grossos, que fazia-o parecer mas velho. Franzia muito a testa e constantemente ajeitava os óculos. Além de tudo era baixo e muito magro. Tinha vinte e um anos. Estudava em uma universidade na capital, ou melhor dizendo, não sabia mais se iria continuar estudando, pois descobrira que não gostava nada daquilo, e o dinheiro já lhe fazia falta.
O outro era mais bem afeiçoado. Acabara de entrar na casa dos trinta e aparentava ser uma pessoa extremamente inteligente. Este tinha uma vasta barba no rosto e também usava óculos. Seu nariz era um pouco grande, assim como suas mãos, que cobriam todo copo com sua bebida favorita, uísque, este sem gelo.
Fumavam cigarros atrás de cigarros, formando uma nuvem de fumaça sobre suas cabeças.
– Veja, – disse o mais jovem agitando suas mãos. – esta velha que apesar da sua idade mora sozinha à muito, já não deve mais nada a sociedade, ela tornou-se, por vontade própria, totalmente obsoleta. Mal consegue locomover-se e está viva apenas por causa de seus remédios, sim, andei conversando com seu farmacêutico. Ela não passa de uma desocupada e já não age mais em pró ao progresso, muito pelo contrário, pessoas como ela são o gargalo para o avanço das massas. Sua família a rejeita, mesmo sendo ela estupidamente rica. Dizem que em seu testamento está alegado que todo seu dinheiro será doado a uma instituição que protege a lei dos indígenas. Veja bem o que estou dizendo, entregará todo o dinheiro aos índios! Estes que já nem podem ser considerados mais índios. Isso é o mesmo que queimar toda essa fortuna. Tirar a vida de uma pessoa pode parecer um ato cruel e desumano, mas pense bem, com o dinheiro que recolheremos da defunta iremos aplicar em algo melhor, algo que possa ser beneficiável a muitas pessoas como nós, que temos idéias que irão fazer nosso país evoluir e nossa sociedade amadurecer, mas que não tem recursos para iniciar um empreendimento. Poderemos abrir uma escola gratuita, onde ensinaremos os verdadeiros valores da humanidade e as lições necessárias e primordiais que as crianças não mais aprendem hoje em dia. Ou podemos construir um pequeno hospital, onde curaremos os realmente necessitados. Podemos usar esse dinheiro também para entrar no ramo da política, mesmo não sendo este o verdadeiro poder já é uma maneira de iniciar uma mudança. Imagine só quantas coisas poderemos criar, que irá trazer benefícios a diversas pessoas e em troca apenas de uma miserável vida, que já não vale nada.
O jovem arfava um pouco e engolira o resto da bebida em seu copo. O outro ouvira tudo atentamente e apenas alisava sua barba, por fim deu uma enorme gargalhada. Assim que parou começou a falar.
– Realmente seu modo de pensar se parece com o meu de dez anos atrás. – Bebeu o resto de seu uísque e continuou, agora com uma voz um pouco mais obscura. – Hoje posso te afirmar que essas idéias são estupidamente erradas e controversas. Afirma você que esta velha já não deve mais nada a sociedade e que se tornou obsoleta, mas eu te digo uma coisa, ao meu ver ninguém deve nada a ninguém. As pessoas não precisam prestar contas sobre o que estão fazendo ou tramando. A sociedade em si não tem o direito de ditar o modo de viver das pessoas, cada um deve levar sua vida do modo que melhor lhe conver. Se uma velha optar por viver sozinha, que ela então viva sozinha, se um jovem resolver beber rum até o amanhecer, que beba então. Tudo isso, é claro, sem perturbar a paz alheia. Devemos ter um profundo respeito pelos seres, sendo eles humanos ou não. Não temos o direito de eliminar uma vida, mesmo que esta venha salvar cem outras vidas. Diz você que os índios não merecem um lugar entre as massas, que são seres inferiores, mas analise meu amigo, quem de nós hoje em dia pode ser considerado um ser superior? Não podemos ser classificados por classes ou raça, fazemos parte de um todo, uma única massa. Os verdadeiros valores da sociedade não podem ser ensinados nas escolas ou universidades, cada ser deve encontrar e entender seus valores por si próprio, dentro de sua própria alma. Cada pessoa tem seu próprio valor e deve viver de acordo com ele, sem ser importunado por outras pessoas. Claro que se todos vivessem em pró a evolução da sociedade poderíamos nos considerar abençoados, a ponto de chegar a tal nível de percepção que até mesmo as coisas mais impossíveis poderiam ser realizadas. É por isso, meu amigo, que não podemos matar a velhota, mesmo tendo nós ideais nobres sobre esta causa.
O mais velho parou de falar e novamente alisava a barba, pedira agora uma caneca de cerveja. O jovem parecia agitado, as idéias vagavam por sua cabeça e seus olhos faiscavam. De repente levantou-se e ergueu as duas mãos
– Roubaremos então um banco!