quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Meia noite

Mil imagens passaram pela sua mente no momento em que ouviu as doze badaladas do sino. A rala chuva gotejava pelas ruas encharcando cada esquina. Os poucos vagantes que transitavam por ali andavam pelas beiradas dos toldos para não se molharem. O céu cinzento não deixava transpassar o brilho das estrelas ou mesmo da lua. Um luminoso em mau funcionamento atraia clientes para um hotel barato. Ela dissera para esperar no banco da praça, próximo ao luminoso, à meia-noite. Estranho encontro, ele pensara. A chuva apertou e grossos pingos d’água atingiam sua jaqueta preta, ele se encolheu mais no banco. Um pássaro solitário com hábitos noturnos também se encolhia empoleirado em um galho. Era reconfortante ouvir os sons noturnos da cidade misturados com o da chuva, por um momento ele torceu para que ela não aparecesse apenas para poder apreciar mais o momento. Ela chegou pouco tempo depois segurando um guarda-chuva cor de rosa e calçando botas de cano alto. O que mais o atraia nela eram seus olhos e nesse momento estava olhando para eles hipnotizado, mal conseguiu ver a arma em sua mão.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Sam Pântano e o garoto

O garoto dormia sozinho em seu quarto. Tranqüilo. Era um quarto normal de um garoto. Uma cama normal, um pequeno guarda-roupa normal, uma mesa de escrivaninha com uma bagunça de papeis e livros e lápis de colorir normal. As paredes eram pintadas de cor de salmão e transmitiam a sensação de paz e tranqüilidade. Um quadro com a figura de uma caravela estava pendurado sobre a cabeceira da cama. O teto era um forro de madeira com uma inclinação que acabava, ou começava, quase na mesma altura do guarda-roupa e subia até a beira do telhado. O garoto dormia sozinho em seu quarto, mas isso não significava que ele estava sozinho. De repente o garoto ouviu: Anda, anda, pula, pula, rói, roi, anda e anda. O barulho vinha do teto acima do forro de madeira. Já sabia o que era, Sam Pântano, o rato que morava em seu forro estava iniciando suas atividades noturnas. O garoto num viu o rato, apenas ouvia seus barulhos. Sam Pântano nunca viu o garoto, apenas ouvia seus barulhos e sentia seu cheiro. Já estavam acostumados um com o outro. Até tinham uma certa feição entre si. Quando o garoto não ouvia Sam Pântano de noite ou quando Sam Pântano não ouvia o garoto de dia era como se as coisas não tivessem completas ou estivessem fora de lugar. Era uma estranha amizade. O garoto dormia sozinho em seu quarto. Tranqüilo, pois ele ouvia: Anda, anda, pula, pula, rói, roi, anda e anda.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O caminho do homem. O caminho do rato

“Um rato quando acuado pode se transformar em um tigre”

Gus escolheu o caminho do boxe quanto ainda era criança. Ele era apenas mais um garotinho mirrado que apanhava dos colegas da turma. Nessa época seu pai havia comprado um moderno vídeo-cassete e semanalmente alugava filmes para divertir a família. Em meio a tantos filmes, Gus assistiu um que falava sobre boxe, o “Touro Indomável”. Como era muito pequeno ele não entendera bem a história do filme, mas ficou vidrado pelas cenas de luta. Sentia o seu sangue ferver ao ver os lutadores trocando socos. A partir daí começou a juntar recortes de jornais e revistas sobre o assunto. Seu pai achava que era coisa passageira, mas quando Gus completou 14 anos fez seu pai o matricular em uma escola de boxe. Mas gostar de boxe é uma coisa, lutar é outra. O rapaz ainda sofria na mão dos colegas. Ele vivia se metendo em brigas, mas nunca revidava e sempre levava a pior. Achava que uma luta de verdade teria que ser travada em cima de um ringue. Isso é o que ele achava, mas no fundo sabia que tinha medo de enfrentar alguém. Mesmo assim, decidiu iniciar os treinamentos do boxe.
Passado dois anos ele ainda não subira no ringue, apenas socara sacos de pancadas e treinava a parte técnica, apesar dos protestos do treinador. Seu treinador reconhecia que Gus não era o tipo de pessoa que subiria em um ringue, dissera isso para o rapaz uma vez, mas mesmo assim ele quis continuar. “Minha vez vai chegar, estou apenas aguardando a hora certa”. Dizia ele. Seu treinador pensava para si, “um rato, mesmo treinado, não passa de um rato”.
Pouco tempo depois o inevitável aconteceu. Chegou o dia da primeira luta de Gus. Um rapaz apenas um ano mais velho que ele, que treinava em uma academia em outra cidade o desafiou para uma luta. Gus de início recusou, mas depois de muita conversa com o treinador e com seus pais ele voltou atrás e aceitou o desafio. Era a grande chance de ele mostrar seu aprendizado e se levava mesmo jeito para a coisa. Também era a única forma de superar seu medo.
O treinador de Gus conhecia o adversário. Seu nome era Murata, era descendente de japoneses. Ele até que tinha certa experiência em lutas e tinha uns bons socos. A vitória de Murata era quase certa. Dois dias antes da luta, Gus já começara a tremer.
Os dois subiram no ringue em uma noite chuvosa. As arquibancadas não estavam lotadas, apenas parentes, amigos e curiosos.
Soou o gongo.
Gus tremia, Murata socava. No primeiro round Gus não conseguia se controlar e não deu o menor sinal que ia acertar o adversário. Foi a lona duas vezes e já estava com a cara inchada quando soou novamente o gongo. Seu treinador estava com um sorriso irônico na cara. “Você é um rato”, disse ele, “se não consegue dar ao menos um soco porque resolveu lutar boxe?” Não se sabe a certo se essas palavras mexeram com ele ou se foi a chegada de alguma garota na arquibancada, mas nos dois próximos round Gus bateu igual gente grande. Murata foi ao chão no inicio do 4° round e não levantou mais.
Depois disso Gus desistiu do boxe. Ele finalmente percebera que não gostava de bater em alguém. Gostava mais de assistir ou de socar sacos de pancada. Futuramente viraria empresário de alguns boxeadores e ganharia muito dinheiro.
Um rato sabe como ganhar dinheiro.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Sangue Ruim

- Ah, mer...
Neste momento o tempo parou para Gary. Seus olhos viram um hospital, sua mãe levada para a sala de parto, seu nascimento. Que estranho era ver a si próprio nascendo. Depois reconheceu o pai erguendo-o com braços e se gabando para os amigos do seu primeiro filho e de como ele iria dar trabalho para as garotas. Logo estava andando e falando suas primeiras palavras, seus avós não o deixavam em paz, mimando-o todo o tempo. O primeiro dia na escola, a professora monstro. Os primeiros amigos e seu primeiro contato com as garotas. O futebol na hora do recreio era fantástico. A primeira queda quando chegara em casa depois da aula e soubera que sua mãe havia partido para o reino dos céus. Três meses depois foram seus avós em um acidente de carro. Nessa época começou a se desvirtuar. A vida começou a mostrar caminhos tortuosos e estranhos. Ele tinha apenas 11 anos quando seu pai se matou na cozinha com um tiro na cabeça, foi ele que achou o corpo. Depois disso foi morar com uma dia em outra cidade. Gary viu a si próprio com 13 anos participando do primeiro assalto. Ele era o mais novo do bando, os outros o chamavam de Sangue Ruim. Ele era extremamente violento e encarava qualquer um. Como era pesada aquela arma em sua mão. Após isso a situação foi se deteriorando cada vez mais. Com 18 anos já tinha 11 assassinatos em suas costas e centenas de delitos, assaltos e seqüestros. Nessa época entrou para uma grande organização do tráfico, enriquecera como nunca, mas a vida só piorara. Era época de natal quando conhecera Ana Cruz, filha de um grande traficante boliviano, casada com uns dos chefes do tráfico. Morena de pele clara e olhos de mel. Sangue Ruim amou-a e assinou sua sentença de morte. Estava em uma casa na praia com Ana Cruz quando soubera que alguém o havia dedurado e que um matador fora contratado e estava em seu encalço para dar cabo de sua vida. Ele fugiu para uma cidade do interior, mas o matador era Frank, o Dragão. Ninguém escapava se suas garras. Gary estava na cama, o Dragão de pé a sua frente apontando sua 9 mm. Ele ouviu o disparo e sentiu a bala penetrar em sua testa, era estranho, parecia que tudo estava em câmera lenta. Foi nessa hora que sua vida passou diante de seus olhos.
- ...da!

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

A garota com olhos de jabuticaba

- Sinceramente ainda não entendi o que você quer me dizer.
- Quero dizer simplesmente que a vida piora a cada dia que passa e que caba a nós decidir se isso é bom ou ruim. Entenda que piorar pode ser bom.
- Essa parte é que não me entra na cabeça, como assim “piorar pode ser bom”?
- Todo mundo quer ganhar na loteria, não é mesmo? E para que? Para não precisar mais trabalhar e realizar todos seus caprichos. Mas enquanto não ganham, continuam trabalhando e estudando. Ralando, sabe. Todo dia um novo empecilho surge e mais contas a pagar caem em suas mãos, claro que nem tudo envolve dinheiro, é só um exemplo. A gente vai envelhecendo e as coisas vão piorando, muitas novas responsabilidades surgem e sua cabeça se enche de preocupações. Quando éramos crianças ou jovens andávamos de ônibus ou de carona com os pais e não víamos a hora de podermos dirigir. Mas o que não sabíamos é que tudo era mais simples. A única preocupação era saber que ônibus pegar. Nem passava por nossas cabeças que para ter um carro teríamos que trabalhar muito, poupar dinheiro, depois tem o seguro e a gasolina também. Ainda assim queremos mais coisas, mais dores de cabeça. Piora, mas é bom.
- Nossa, você não está legal hoje. Que papo chato, está me chateando.
- Estou? É o vinho, e você também não fala nada...
- Não falo, mas o silêncio às vezes também é bom. Melhor do que ficar divagando aí, sem nexo nenhum.
- Tudo bem. Vou pegar alguma coisa para comer.
- Vá lá.
Enquanto Charlie buscava alguma coisa para comer, a garota com olhos de jabuticaba despejou uma cápsula com um pó dentro em seu copo de vinho. Mal sabia Charlie que a garota que conheceu a pouco tempo e que estava se apaixonando era um assassina contratada para matá-lo.
Charlie voltou a mesa, sentou-se e bebeu seu vinho. Sempre sorrindo.

domingo, 4 de janeiro de 2009

O chamado das cavernas

A lua cheia despontou no horizonte tornando a noite mais clara. O vento insistente balançava as folhas dos arbustos e fazia um barulho de assovio quando passava por entre as pedras e a entrada da caverna. Ao longe se ouvia o som de algum grande felino atacando algum animal, Águia Vermelha estremeceu em sua posição de vigia na entrada da caverna. Até onde seus olhos alcançavam não via sinal do animal, apenas o ouvia. Os outros ainda dormiam nas partes mais profundas.
Águia Vermelha estava cansado, já estava ali a algumas horas e sabia que o dia seguinte iria ser agitado e exaustivo. Era o dia em que os guerreiros partiriam para a caça. E ele estaria entre os bravos, apesar de mal ter completado 15 anos. Seria sua primeira vez.
Depois de algum tempo sentou que alguém se aproximava vindo do fundo da caverna, era Chuva Passageira, um rapaz um pouco mais novo que ele e que iria tomar seu posto de vigia. Águia Vermelha alertou sobre a proximidade do felino e foi dormir. Teve um sono agitado com alguns sonhos estranhos, mas depois não se lembrou sobre o eu sonhara. Foi despertado logo que os primeiros raios de sol penetraram sobre a planície. Todos os homens da tribo estavam de pé ou já estavam do lado de fora. Pouco tempo depois já estavam todos reunidos. Cada um já estava armado com uma comprida lança e as mulheres os haviam pintados para a caça. O homem mais velho da tribo passava de um por um entoando preces antigas para dar boa sorte. Sua pele negra era muito enrugada e seus cabelos emaranhados eram muito brancos. Carregava vários colares de ossos no pescoço e pulseiras de pedras e penas nos punhos, seu nome era Pássaro Desperto. Acabada as preces e cantigas partiram os caçadores para labuta, as mulheres cabisbaixas voltaram para seus afazeres regulares. Sabiam que algumas não veriam mais seus homens, as caçadas eram por vezes cruéis e deixavam vítimas. Águia Vermelha olhou mais uma vez para traz e sentiu orgulho de si mesmo por ser um dos escolhidos para caçar.
Três dias se passaram sem que eles encontrassem uma manada. Mas sabiam que ainda era cedo. Abateram apenas alguns animais de médio porte para própria sobrevivência. Já fazia três anos que o povo da planície e também os animais sofriam com a seca. Chovia apenas alguns dias por ano, que não era suficiente para manter cheios os rios mais próximos, os mais velhos da tribo já pensavam em se mudar novamente. Procurar outra caverna mais ao norte se a situação continuasse assim. Mais dois dias se passou e os rastreadores encontraram os primeiros traços de uma grande manada, os rastros eram antigos, mas já era alguma coisa. Pouco tempo depois de encontrarem os rastros, os caçadores que estavam mais a frente alertaram que havia uma outra tribo rumando em sua direção, e já os haviam avistado. Todos se preparam para a luta, pois não sabiam se tinham intenções hostis. As duas tribos se depararam frente a frente, mantendo uma distância segura. Eles se mediam a avaliavam uns aos outros. O número de guerreiros era parecido entre as duas, chegaram a conclusão de que não valia a pena entrar em conflito, isso mesmo sem se conversarem. Foi então que o chão começou a tremer. Águia Vermelha olhou para os lados assustado mas não encontrou nada, os outros também estavam apreensivos. Uma grande nuvem de poeira estava se levantando ao leste e parecia crescer ainda mais, os caçadores agora já sabiam o que era. Era um estouro de manada, e vinha diretamente sobre eles. As primeiras cabeças começaram a serem avistadas, eram búfalos e nada os fariam parar. Não havia alguma árvore por perto e nem mesmo um morro alto para subirem. A única coisa que poderiam fazer era ficaram todos juntos num grande círculo e torcer para os búfalos desviarem. A outra tribo parece que teve a mesma idéia e concluíram que teriam mais chance se juntassem com a outra tribo. Foi o que fizeram, se espremeram um ao lado do outro e formaram o circulo, como se fosse para a manada um obstáculo natural. Estavam bem próximos agora e os caçadores lançaram suas lanças atingindo um grande número de animais, se sobrevivessem ao estouro da manada já teriam caça para levar de volta à caverna. A manada de fato desviara deles, mas os que estavam nas beiradas do círculo foram levados por esbarrões desses enormes animais. Depois de um tempo que, para os caçadores, pareceu durar horas a manada se foi e a nuvem de poeira já estava baixando. Muitos caçadores estava mortos das duas tribos, Águia Vermelha sobreviveu por sorte, tinha um corte grande na coxa direita, mas ainda conseguia andar. Vários búfalos estavam caídos também, atingidos pelas lanças e pisoteados. Fizeram o mais correto e dividiram a caça entre as tribos. Levaram o que deu para carregar. Apesar dos pesares a caçada foi boa, teriam carne para se alimentarem por alguns meses. Voltaram para a caverna em silêncio.